terça-feira, 28 de maio de 2019

E se questionarmos a monogamia?





"Amar é verbo e não pronome possessivo."

"Todo mundo é a pessoa certa, até não ser mais."

"Precisamos de tempo para abandonar todas as pretensões de aprisionamento do outro; destruir qualquer intenção de cativeiro e, quem sabe um dia, amar sem construir cercas, sem adestrar o outro para o afago como recompensa."


Olá pessoas, eu quero logo dizer que este texto não tem pretenção de verdade absoluta, o autor, inclusive, não é dos que acredita nas tentativas fetichizantes e alienadas que surgem das alternativas poliamorosas de responder a problemática do afeto na contemporaneidade, não apoia, portanto, a afirmação da incerteza e da dispersão dos afetos que se consolida no mundo presente. Não se surpreenda, caro(a) leitor(a) se por ventura encontrar aqui alguma pergunta sem resposta ou alguma categoria sem maiores detalhes e desdobramentos teóricos, é pra ser assim mesmo, não tenho todas as respostas ainda.

No entanto, que tal realizarmos um breve exercício de questionar o raramente questionável? A polêmica monogamia!

Mas espera um pouco, antes de qualquer coisa assiste esse vídeo aqui que o pessoal da Vox fez na Netflix, é uma série chamada Explained e o primeiro episódio se chama, Monogamia, explicada. Assiste lá, são só 18 minutinhos, depois volta aqui pra ler o texto. Ah, e não esquece de colocar as legendas em português do Brasil!


Bora começar!

Os complexos afetivos surgem da necessidade de o ser dar resposta a problemas reais na reprodução social dos laços afetivos socialmente construídos pela práxis objetiva que foi posta em movimento no mundo. Se isto for verdade, é também verdade que o amor é, também, socialmente construído, não brota como que por instinto na subjetividade humana. De novo, se isto for verdade, é igualmente verdade que as mediações vividas pelo ser na cotidianidade contém um quantum de possibilidade de tornar esta práxis social objetiva também embrutecida, uma desumanidade socialmente posta. Quanto menos amamos, menos sabemos sobre o amor vivido no mundo atual. O amor exige ócio, exige disponibilidade afetiva para o conhecimento do(s) outro(s).

Aqui caberia um importante debate a respeito da sempre disponibilidade afetiva da mulher no mundo burguês. Tratarei deste tema numa outra matéria, não por julgá-lo secundário, mas porque pretendo, neste texto, registrar polêmicas que ainda serão temas de debates mais profícuos aqui no site. Deixarei para um outro texto, também, o amor romântico, um dos eixos que sustentam a reprodução social afetiva do patriarcado no delirante mundo burguês.

De certo modo, o mundo burguês trata de inserir uma tendência nefasta a esta forma de experimentar o afeto, a que chamamos de amor, que então deixa de ser uma elevação afetiva superior da consciência humana para tornar-se uma efemeridade bárbara, uma banalidade, uma superficialidade que não se constitui como forma eminentemente superior de contato entre no mínimo dois seres sociais que compartilham sentimentos afetivos um tanto recíprocos entre um(ns) e outro(s).

O amor tornaria-se, portanto, uma banal convenção social, um mero contrato social, uma prisão afetiva no mundo burguês? Ou amor e monogamia são coisas diferentes? Se sim, é possível amar e estabelecer um vínculo afetivo na ausência da monogamia? O amor, dentro do vínculo social afetivo que caracteriza os relacionamentos no mundo burguês, estaria necessariamente ligado a exclusividade sexual? "Eu te amo, mas você tem que ser só minha. Eu te amo, mas você tem que ser só meu."

A humanidade rebaixada com o embrutecimento da subjetividade humana somente pode ser resgatada ao imergir o ser em uma totalidade capaz de desenvolver suas potencialidades sensíveis. Esta sensibilidade passa, necessariamente, pela valoração de gestos afetivos, ou posições teleológicas que dizem respeito aos diversos afetos mesclados no cotidiano, que surgem, óbvio, dessa cotidianidade e retroagem em seu ser, em sua substância sensível, modificando sua subjetividade em direção a um patamar cada vez maior de humanização do indivíduo, de sensibilidade do ser, portanto.

A arte, como forma peculiar de refletir a realidade socialmente posta, nos traz apontamentos interessantes no que diz respeito a metamorfose sofrida por esta forma de afeto, o amor, no mundo burguês.

Vejamos especificamente a literatura.

Abelardo e Heloísa e Romeu e Julieta talvez sejam os primeiros exemplos representados na estética literária de como o amor na sociedade burguesa se tornaria uma tragédia, literalmente. Aqui surge uma interessante pergunta: É possível que as relações afetivas entre os indivíduos possam acontecer de uma outra forma que não seja o antiquado modelo de posse do corpo e do afeto do outro ser? ou pelo menos fora desta  que parece ser uma tendência geral...

“Fujo para longe de ti, evitando-te como a um inimigo, mas incessantementete procuro em meu pensamento. Trago tua imagem em minha memória e assim me traio e contradigo, eu te odeio, eu te amo.” Carta de Abelardo a Heloísa.

“É certo que quanto maior é a causa da dor, maior se faz a necessidade de para ela encontrar consolo, e este ninguém pode me dar, além de ti. Tu és a causa de minha pena, e só tu podes me proporcionar conforto. Só tu tens o poder de me entristecer, de me fazer feliz ou trazer consolo.” Carta de Heloísa a Abelardo

Agora fiquei na dúvida...

Haveria, na sociabilidade burguesa, uma dimensão trágica do amor que o torna um mero juramento formal, marcando o início de uma prisão emocional? Estaria o eu te amo perdendo totalmente o sentido, por não passar, de fato, da formalização verbal de um contrato monogâmico de relação propriedade/posse do outro que impede a demonstração de afeto por outro ser que não seja o(a) parceiro(a) monogâmico(a)? O amor, do puritano mundo burguês, é, de fato, um enclausuramento afetivo, e uma forma de propriedade privada do afeto alheio?

(...)

Conforme o gênero humano se desenvolve em meio a reprodução do capital, o processo de fetichização de mercadoria faz com que a necessidade de obtenção do dinheiro seja muito mais real do que as necessidades de elevação do gênero humano, de elevação da subjetividade humana para um patamar superior de sensibilidade estética, o sujeito sente a reverberação da propriedade privada nos complexos afetivos e se convence de que será feliz tendo a posse de outros indivíduos, tendo a posse do dinheiro, ou a posse, como forma de proprietário privado, do afeto alheio.

Ademais, há algumas considerações a serem feitas sobre os relacionamentos monogâmicos nos dois últimos séculos e as consequências desta forma de manifestação afetiva na constituição da família tipicamente burguesa. No entanto, há um fator que muito causa polêmica quando discutido, a saber, o sofrimento imanente a uma relação afetiva, a pauperização da substância sensível do ser.

Vamos falar sobre a bad!

A manifestação do sofrimento por amor (a famosa "bad", para ficarmos com os termos pós-modernistas cunhados para a caracterização deste drama existencialista) é não mais do que o ego implorando atenção, é a manifestação de uma subjetividade que encontra-se pauperizada, na dimensão dos complexos afetivos, é a expressão de um indivíduo que, de tão egoísta, não suporta estar em outro lugar que não seja o centro das atenções na vida do outro, ou pelo menos algo equivalente. O sofrimento pelo não desejo do outro em nós é a expressão madura do amor monogâmico-exclusivo-e-sexuado do período de decadência ideológica da burguesia, e contém, em sua essência, uma tendência em constituir relacionamentos afetivos que nada mais são do que prisões trágico-afetivas que tem como momento predominante o desejo sexuado.

Assim, neste início de século, os relacionamentos possuem uma enorme tendência, e cada vez mais empiricamente constatável, a pautarem suas respectivas manutenções no medo da perda de desejo que o outro tem sobre nós. Dizendo em outras palavras, o medo de perder o outro, ou o medo de perder a exclusividade do corpo do outro, desencadeia um sofrimento existencialista que começa a partir do firmamento do contrato monogâmico. Este novo nexo causal tem consequências enormes para a constituição das subjetividades masculina e feminina, qual seja, toda a sexualidade dos papéis de gênero do esposo/parceiro ideal e da esposa/parceira ideal serão erguidas a partir da alimentação deste desejo que se torna o principal eixo da conquista de um(a) parceiro(a) monogâmico(a), esta conquista constitui-se como um aprisionamento afetivo que tem no componente sexual sua mais forte característica. O sofrimento, neste caso, viria do desejo, do desejo de posse? E o amor, se fundamentaria no medo, no medo de que esta posse seja perdida? Como dissemos no início, esta é, todavia, apenas uma tendência geral, e não se constitui como uma generalização leviana de minha parte.

Veja, é o momento predominante quem estabelece o campo de possibilidades onde serão construídas as tendências gerais de escolha valorativa dos indivíduos. Quanto menor for a constituição de objetivações que intensificam os vínculos da esfera social, menor será a conexão destas ricas mediações aos elementos de continuidade que constituem a substância do ser, e maior serão as tendências que qualitativamente dirigem o processo a questões mais pragmáticas, efêmeras e passageiras, utilitaristas, imediatistas.

Se a relação no mundo burguês se torna um mero jogo ritualístico entre conquistador(a) e conquistado(a), na qual o vencedor é aquele que consegue seduzir o outro, então o jogo é sempre entre um mais fraco que você, ou você é a parte mais fraca e certamente cedeu à conquista do outro por meio de flertes e rituais sedutores. Seria esta uma tendência predominante que marca as relações afetivas no mundo burguês?

Não tá fácil pra ninguém...

Tenho consciência da efemeridade e dispersão com que ocorrem as relações sociais contemporâneas entre as pessoas, tenho consciência que cada vez mais o tempo necessário a construção de vínculos afetivos são mais difíceis devido ao devir que a história da vida acontece, tenho consciência de que é cada vez mais difícil encontrar a confiança, o companheirismo, a espera do apoio afetivo, a amizade, etc... em uma pessoa imersa na mundaneidade caótica de hoje… Parece que só nos resta confiar nos instintos sexuais e tolerar quaisquer qualidades que “já vem” com as pessoas. Mas as coisas não são assim, tão mecânicas. Isto não é ser realista, isto é ser pessimista e mecanicista. Uma compreensão realista entenderia que dentro do processo em que ocorre a realidade já estão contidas as condições de superação. Nenhuma realidade é mecânica e imutável. O ser nunca estará imerso em condições inelutáveis, o real só é real por conter nele o contraditório. O contraditório não se constitui de dados inamovíveis, o contraditório não é “os contrários”, nem “os opostos”, o contraditório é a condição de possibilidade de superação do atual estado de coisas que tende a um estágio mais complexo de objetivação do que as condições de outrora.

Ao entender que o desenvolvimento real de um superior patamar de afetividade é constituído por objetivações que nada mais são do que respostas que os indivíduos dão às suas vidas, ao compreender isso também é possível entender que é dentro do processo da relação social que estão os momentos predominantes de escolhas, ou seja, é dentro do processo que se acumulam uma série de momentos predominantes capazes de se sintetizarem para, em um futuro, inserirem uma direção, um rumo ao processo total. Dizendo em outras palavras, não é algo inexplicável, fora do real, místico ou inumano que mantém as relações afetivas, é a atividade sensível das pessoas que mantém o vínculo afetivo, a forma de manifestação do afeto que chamamos de amor não é algo inexplicável, portanto, é algo social, é socialmente construído e portanto tem de ser posto em movimento por atos humanos, eminentemente humanos.

O individualismo burguês nos faz pensar que nossa esfera individual é autônoma e não afeta outros indivíduos. É um egoísmo cego que nos retira da coletividade e nos distancia da possibilidade de elevarmos nossas capacidades sensíveis e nos tornarmos mais humanos e humanizados. Nos afastamos de uma rica vida social compartilhada, buscamos a felicidade em relações mais pragmáticas e efêmeras, algo que desumaniza e rebaixa a substância sensível do indivíduo.

Vivemos em tempos de dispersão de afetos. Amar é um ato revolucionário!

Em tempo, o poliamor é um falso caminho, uma alternativa fadada ao fracasso. E cabe aqui uma pergunta para um próximo texto, quem sabe... o poliamor reforça ainda mas os privilégios do patriarcado?

"A ausência temporária faz bem (...) os pequenos hábitos, que podem irritar fisicamente e assumir uma forma emocional, desaparecem quando o objeto imediato é removido do campo de visão. As grandes paixões, que pela proximidade assumem a forma da rotina mesquinha, voltam à sua natural dimensão através da magia da distância. O ciumento necessita de um escravo; o ciumento pode amar, mas o amor é para ele apenas um sentimento extravagante; o ciumento é antes de tudo um proprietário privado”

Marx em carta à sua esposa, Jenny. 

Bruno
Doutorando em Educação (UECE)
Membro do GPOSSHE/IMO/UECE


Gostou? Comenta aqui em baixo pra gente conversar!