sábado, 25 de maio de 2019

Sobre o conceito de interseccionalidade





Olá, meu nome é Karla Costa, faço parte do GPOSSHE desde 2014, e atualmente sou doutoranda em Educação, pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Esse texto diz respeito a uma série de discussões que pretendemos fazer em torno das relações identitárias, das pautas identitárias, das categorias que essas pautas identitárias trazem, principalmente para a luta feminista, à exemplo da Interseccionalidade,  da sororidade, do lugar de fala, do empoderamento... São categorias que são desenvolvidas há algum tempo, mas que pra muitas mulheres, que estão no interior da militância, elas são categorias ainda confusas. Daí a necessidade de a gente discutir essas categorias, compreendê-las e avançar na luta, inserindo a pergunta: "Porque essas discussões no interior do feminismo são importantes para a luta de classes, para a transformação dessa sociedade?" 

O primeiro tema a ser debatido é o da INTERSECCIONALIDADE.

Confesso pra vocês que quando comecei a estudar pra escrever esse texto e discutir esse tema, eu achei que viria aqui pra fazer uma crítica contundente ao tema da Interseccionalidade. Nos atuais textos que trabalham a questão da interseccionalidade dentro do feminismo, principalmente dentro do feminismo negro, eu achava que faltava uma compreensão mais profunda da classe, da necessidade de superação do sistema capitalista, e então, da necessidade de extinção das classes sociais, da forma como elas são apresentadas nesse sistema. Mas ao estudar o tema da Interseccionalidade, ao pesquisar outros textos que definiam, explicavam e historicizavam o termo, eu compreendi que a Interseccionalidade, surge, justamente num contexto da necessidade de defender aquilo que é um feminismo classista.

Por onde eu comecei? Comecei estudando e lendo esse livro da Carla Akotirene, uma doutoranda, em Ciências Sociais, e uma das autoras da série Feminismos Plurais da editora Letramento com o Justificando, coordenado pela Djamila Ribeiro. Nesse livro, é muito confusa a categoria da Interseccionalidade como ela foi apresentada, pois não há uma explicação clara, detalhada, do que ela significa, então, partindo desse livro, eu fui buscar outras obras e encontrei uma autora, também doutoranda, da Universidade Federal Fluminense - UFF, chamada Bárbara Araújo Machado, e ela publicou um artigo que se chama: "INTERSECCIONALIDADE, CONSUBSTANCIALIDADE, E MARXISMO: DEBATES TEÓRICOS E POLÍTICOS." Nesse artigo a autora explica com mais propriedade, com mais clareza, o que significa a Interseccionalidade.

Aqui está o link do artigo pra que vocês possam acessar e ler na íntegra. Nele ela vai explicar que a Interseccionalidade, surge como termo oficial na década de 1990, cunhado por uma pensadora, feminista, militante e negra, Kimberlé Creenshaw, e essa autora vai cunhar esse termo no intuito de expressar a necessidade de articular, as diversas opressões: Gênero, raça e classe.

Mas ela não é a primeira a pensar numa ideia da intersecção dessas opressões, já na década de 1970, em obras, palestras e falas de coletivos de feministas negras, que surgem nessa década, elas já apontavam essa necessidade, fazendo uma crítica, ao feminismo liberal, que partia de uma concepção do que elas chamam de mulher universal.

Uma categoria importante pra gente retomar em outro texto.

Partindo dessa compreensão, as mulheres não são iguais, as opressões que elas sofrem não são iguais, é necessário, uma categoria, uma epistemologia, uma metodologia, que permita as mulheres, enxergar essas diversas intersecções. Essa autora, Kimberlé Creenshaw, explica o termo Interseccionalidade por meio de uma analogia, segundo a qual, a Interseccionalidade é a possibilidade de enxergar um cruzamento, uma via, na qual, os diversos cruzamentos são as diversas opressões.

Nessa via, a mulher negra é atingida por diversas opressões, não apenas classe, raça ou gênero. Essa perspectiva é fundamental pra gente entender, por exemplo, porque uma mulher negra, pobre, sofre uma opressão diferente de uma mulher negra da classe dominante. Só entendendo, as diversas opressões que atingem essas diferentes mulheres, você compreende o lugar que elas estão posicionadas na sociedade.

Qual o problema da compreensão atual da Interseccionalidade? É uma falta de radicalidade na compreensão do que é a classe. Essa autora, a Bárbara, explica isso muito bem, quando diz que algumas autoras atuais, que discutem a Interseccionalidade, compreendem a classe de maneira quantitativa. Seria: o quanto de dinheiro possui um indivíduo ou a mulher e o quanto ele pode acessar de consumo. Então, é uma compreensão que não radicaliza a posição qualitativa das classes. Ou seja, qual a estrutura que organiza essas classes? A qual classe ela pertence? Qual o fundamento dessas classes?

Nesse sentido, esse cruzamento, onde essa mulher negra está, (e agora usarei um termo da Carla Akotirene) está "acidentada" (AKOTIRENE, 2018), pra entender esse cruzamento, não basta a gente entender as opressões, apenas no seu caráter identitário. Não é só uma questão de identificação, é uma questão ontológica. A Bárbara Araújo faz justamente essa crítica, quando a Carla Akotirene define a Interseccionalidade nesse livro, ela vai usar diversas vezes a palavra epistemologia, e ela não avança a partir disso.

O que é Epistemologia? É um estudo do conhecimento, das possibilidades do homem conhecer, da relação de um sujeito questionador e um objeto a ser conhecido. Ao ficar apenas no campo da Epistemologia, nós podemos criar a ideia de que as categorias são eternas, de que os objetos já estão prontos, de que eles são dados a priori, a partir daí você pode compreender que a categoria Mulher Universal é pré-existente, então, há uma mulher universal, que já existe, e ela não foi posta.

Nesse sentido, a autora Bárbara Araújo Machado, faz a crítica ao atual conceito de Interseccionalidade, que se tornou famoso por volta dos anos 2000, segundo ela, por uma distorção do termo, que vai retirar justamente o caráter classista, ela vai criticar que ele se define como uma epistemologia, negando o caráter ontológico, da compreensão dessas opressões. Isso fica muito claro quando a gente compara com o livro da Carla Akotirene, pois ela cita diversas vezes que a Interseccionalidade é uma epistemologia, um olhar, uma sensibilidade...

Tudo isso, dentro do campo da epistemologia que é a compreensão da Teoria do Conhecimento, de como o homem pode conhecer, torna essa categoria uma universalidade, dá a categoria um status de teoria, que não é explicado pela Carla Akotirene. Segundo Bárbara, quando esse termo é cunhado pela Kimberlé Crenshaw, ela não tinha o objetivo de tornar esse termo uma categoria, mas era, em caráter provisório, uma metodologia pra avançar nas lutas feministas, nas pautas feministas e combater o feminismo liberal.

O feminismo liberal, ao compreender as classes apenas nesse sentido quantitativo, de acesso ao consumo, através da posse do dinheiro, cria a ideia de que as classes são eternas. Então, o que o feminismo vai conseguir são lutas pontuais para que mulheres saltem para classes, onde esse valor quantitativo de quantidade de dinheiro e acesso ao consumo, e as oportunidades dentro do sistema capitalista, sejam acessíveis, pois são negadas a essas mulheres negras, aqui dentro da luta do feminismo negro.

Ao contrário, a Bárbara vai defender a necessidade de compreender ontologicamente essas opressões, para a partir daí entender o que é classe, quais são e como se formaram historicamente, então ela vai defender que a questão não é negar a Interseccionalidade, mas dar a essa categoria um caráter histórico e dialético, não é nem dar, na verdade, é resgatar a origem do termo, quando as feministas negras norte americanas vão defender e disputar no feminismo liberal, que avançava na época, esse caráter de classe.

Então, porque a Interseccionalidade compreendida na perspectiva liberal precisa ser combatida? Porque ela não ameaça o sistema capitalista. Ao contrário, o sistema capitalista se apropria desses discursos que aparentemente estão defendendo as mulheres negras, pobres, faveladas, mas, na verdade, estão condicionando a permanência delas na classe onde elas pertencem, na classe expropriada pelo sistema capitalista.

Não é só o discurso, não é só dizer que é feminista negra ou dizer que faz um debate Interseccional, mas, defender a superação da sociedade capitalista, para a partir daí entender, que a luta feminista, não é, (não tem o objetivo aqui de dizer que gênero e raça não são importantes ou não são fundamentais... ou não são estruturais, pra usar as palavras dessa coleção Feminismos Plurais, o racismo é estrutural, o patriarcado, o Cis Hétero Patriarcado também é estrutural, mas eles são momentos, etapas, são aspectos da complexidade da sociedade capitalista, e nessa sociedade capitalista, há um momento predominante, é esse momento que estrutura as demais estruturas de opressão da sociedade capitalista) A Bárbara argumenta que a distorção do termo Interseccionalidade foi justamente quando ele deixou de ser compreendido como um momento da luta de classes, um momento da luta feminista, e passou a ser central nessa luta.

Nós precisamos, então, recolocar o que é central, recolocar o que é o momento predominante, e o momento predominante é a superação da exploração das classes, assim, as possibilidades de superação do racismo, do patriarcado, da LGBTfobia, estarão postas. As críticas ao marxismo, ao feminismo marxista, vão dizer que, na sociedade comunista, tudo será maravilhoso, não é possível dizer isso! Mas é possível dizer que a estrutura que gera essas opressões não existirá mais, e, nesse sentido, as demais estruturas estarão passíveis de mudança.


Então, é uma recolocação da necessidade da superação das classes.

Karla Raphaella Costa Pereira
Doutoranda em Educação (PPGE/UECE)