Elenco de ‘Coisa Mais Linda’ (Foto: Netflix/Divulgação)
Coisa mais linda é uma série brasileira produzida pela Netflix. Lançada em 22 de março de 2019, o enredo está ambientado no Rio de Janeiro da década 1950. Por ter quatro mulheres como protagonistas e por abordar uma considerável lista de pautas do feminismo hegemônico - esse feminismo que vemos nas novelas, nas propagandas, nas revistas, nos programas de televisão e no cinema, tem causado um burburinho entre as mulheres, sendo considerada um exemplo de representação feminista na arte.
Coisa Mais Linda conta a história de quatro mulheres: a personagem principal, Maria Luíza (interpretada por Maria Casadevall), rica filha de fazendeiros, chega ao Rio de Janeiro, em 1959, a procura do marido e descobre que ele a tinha enganado e roubado todo o dinheiro que ela investira no sonho de construir um restaurante. Após esse golpe, ela se encontra na encruzilhada entre assumir o fracasso diante da família, desistindo de seus sonhos, ou assumir o desafio de cumprir seus objetivos, mesmo sabendo das dificuldades que o machismo daquela sociedade a imporia.
Thereza, interpretada por Mel Lisboa, é uma jornalista que viveu muitos anos na Europa e voltou ao Brasil depois de uma tragédia familiar. Thereza trabalha numa revista feminina, mas que, a exceção dela mesma, é escrita por homens. Naquele espaço, a personagem disputa justamente o “lugar de fala” das mulheres no interior de suas próprias pautas. No arco de Thereza, vale a pena destacar a personagem de Thaila Ayala, Helô, uma modelo aspirante a jornalista. Helô é a segunda mulher a ser contratada pela revista e a enfrentar o machismo ali imperante, desafiando as decisões editoriais para não só dar voz às mulheres, mas para subverter a imagem consagrada da feminilidade.
Lígia Soares, interpretada por Fernanda Vasconcellos, é uma aspirante a cantora de muito talento, mas que é oprimida pelo marido e vive um relacionamento abusivo. Lígia, muito bem interpretada, demonstra uma força de vontade e uma melancolia que nos faz pensar sobre a forma como o patriarcado e as suas mais variadas manifestações tolhem as mulheres, inibem nossos talentos, tiram nossa vontade de viver. Lígia é a personagem que mais representada a possibilidade de mudança e o preço as mulheres pagam por questionar as estruturas e os destinos que outros nos traçaram.
A personagem mais legal de todas é Adélia, uma mulher preta, empregada doméstica, mãe solo, que vive no morro. Adélia representa toda uma classe e se difere completamente, nesse sentido, das outras três mulheres da classe dominante, por isso Adélia apresenta às demais um ponto de vista diferente. No arco de Adélia, a figuração do morro traz alguns elementos típicos do Rio de Janeiro: o samba, o “malandro”, a boemia etc.
Essas mulheres se encontram e se fortalecem nas suas lutas cotidianas, nos desafios de trabalho, na vontade de superar as dificuldades para conquistar algum espaço naquele cenário, um Brasil machista, misógino, uma cidade que se estruturava basicamente no interesse e necessidades dos homens. A série trata de um compilado de pautas feministas que envolve a vida dessas quatro mulheres: casamento mal sucedido, golpe, objetificação da mulher, relacionamento aberto, bissexualidade, mulher preta, violência doméstica, mulher no mercado de trabalho, representatividade, empoderamento, sororidade, maternidade solo, relacionamento inter-raça e interclasse, violência psicológica, aborto, e feminicídio.
Qual o resultado disso? Muita superficialidade. Superficialidade no sentido de não sair da superfície dos temas tratados, da aparência fenomênica, além do fato de que precisamos compreender que o feminismo representado ali é liberal, ou seja, um feminismo que se limita a esfera das melhorias de condições no próprio capitalismo, um feminismo que não questiona a estrutura que gera a opressão de gênero e as demais opressões, pois não possui uma perspectiva de transformação substancial da realidade.
Tudo isso, temperado com o cenário exuberante do Rio de Janeiro da década de 1950, com uma trilha sonora poderosa, com s amba, jazz e bossa nova, é uma fórmula certeira, mas, é preciso discutir quais são os limites do feminismo representado nessa série.
Nosso método
É preciso dizer aqui que a análise que farei não é simplesmente subjetiva pautada no meu gosto pessoal, mas se pauta numa perspectiva realista da arte, fundamentada no filósofo húngaro György Lukács, no qual defendemos que o papel da arte é figurar a realidade, tentando capturar a realidade como ela é, expondo as leis, a essência dessa realidade, com vistas a gerar, no leitor, uma catarse, ou seja, uma compreensão elevada de sua própria realidade e de sua condição humana.
Essa representação realista não quer dizer que ela é uma cópia da realidade nem que ela é panfletária, mas que respeita a imanência da realidade, ou seja, o artista figura criativamente a realidade com o máximo de fidelidade possível. O papel do crítico deve ser, antes de tudo, entender que realidade é essa para analisar se aquela figuração, na obra de arte, aproxima-se ou não, distorce ou não distorce a realidade. E mais: qual é o resultado daquela obra do ponto de vista do conhecimento de mundo que a obra gera? Porque a arte é uma forma de conhecimento. Quais são as perspectivas de totalidade que a série levanta? Eu separei nove pontos para discussão.
Vamos ao debate!
Ponto #1
O primeiro deles é a da representação do mito do branco salvador. Lembram do Tarzan? Maria Luíza representa aquela figura que resgata Adélia da condição de vida que está submetida, oportunizando que ela se insira nas rodas de convivência da classe social de Malu, bem como oportuniza uma mudança de vida. Tudo que ela vai conquistar, apesar do esforço dela, vai estar relacionado à oportunidade dada por aquela mulher, a chegada dela é um vento de esperança na vida de Adélia. A gente já sabe que o mito do branco salvador é recorrente nas representações burguesas.
Ponto #2
O segundo ponto diz respeito à crítica ao racismo que é representada na série. O racismo aparece apenas como forma de tratamento aos negros, não há um questionamento substancial sobre os fundamentos estruturais do racismo nem do nosso passado colonial e escravista. Há uma cena de confronto entre Malu e Adélia na qual esta expõe os “privilégios” daquela. A cena é muito interessante, mas não gera uma reflexão profunda da estrutura racista, pois quer apenas pautar a consciência de Maria Luiza em relação a forma como ela encara a vida. O resultado desse confronto se limita a apontar as diferenças sem aprofundar a desigualdade que é a razão dessas mulheres terem vidas tão diferentes. Não é representado, em nenhum momento, porque o morro é majoritariamente habitado por pessoas pretas e o centro e orla do Rio de Janeiro são povoados por pessoas brancas.
Ponto #3
Terceiro ponto: a romantização da pobreza. A personagem Adélia representa a virtude, a bondade, o bom senso. Ao contrário daquela imagem depreciativa do preto depravado, ela constrói a imagem da pobreza virtuosa, a ideia de que a pobreza ensina e que, por isso, ela vai ser a voz da razão para que a personagem branca, Maria Luíza, tome algumas lições sobre a “verdade da vida”. Adélia é um apêndice de Malu: ganha oportunidades desta e, em troca, ensina àquela o verdadeiro significado da vida. Isso é um problema porque não é realista, é uma visão romântica da sociedade. É um romantismo que distorce a realidade, que aliena ao não apresentar o que significa a pobreza, a miséria e a fome. Ser pobre não é uma virtude. Os ensinamentos que a pobreza gera custam muito para os pobres, custam, inclusive, nossa própria humanidade. O morro é figurado como um lugar de alegria, de samba, onde as pessoas convivem harmoniosamente e a gente já sabe, porque Maria Carolina de Jesus, no Quarto de Despejo, já mostrou pra gente que a favela não é bem assim.
Ponto #4
Como dito anteriormente, não se questiona a estrutura social, ao contrário, a estrutura social que produz aqueles indivíduos e os lugares que eles atuam na sociedade é normalizada. Significa dizer que o lugar que ocupamos na sociedade é aleatório, por nascimento, então, não temos culpa de quem somos. Isso conduz a ideia de que é normal ser diferente e de que a diferença de classe é mais uma diferença como as outras com a qual precisamos aprender a lidar e a não julgar as pessoas pela classe que ocupam. Há uma cena da série muito representativa disso, na qual as personagens estão na praia e leem um artigo sobre o bar de Maria Luiza e Adélia, no qual o crítico comenta: "Ah, essa Maria Luíza, filha de fazendeiro”. E a personagem pergunta: "Mas qual o problema de eu ser filha de fazendeiro?”. Respondo eu: todos os problemas do mundo.
Ponto #5
Apesar da sociedade de Ma. Luíza e Adélia ser de 50%, a primeira, depois do sucesso do clube, compra um apartamento de frente para o mar, e a Adélia, no máximo, compra uma televisão para casa dela. Adélia continua, inclusive, morando no morro. Se pensarmos bem, esse ponto se soma ao da romantização da pobreza. A personagem permanece no morro por considerar que lá é um bom lugar para viver. O fato de elas permanecerem nos seus locais, e, digamos, cada um no seu quadrado, indica uma permanência da desigualdade social, por mais que a Adélia esteja vivendo no mundo de Maria Luiza, ela não pertence aquele mundo; ela continua lá no morro.
Ponto #6
Os problemas das mulheres são resolvidos com a entrada delas no mundo dos homens. Há aqui um forte apelo ao feminismo liberal, que não questiona as estruturas de desigualdade, mas que a luta do feminismo, a luta das mulheres, está pautada na meritocracia, no direito de disputar e preencher vagas na estrutura do capitalismo. O limite do feminismo liberal é a igualdade de direitos, ou seja, o direito das mulheres, enquanto gênero, poderem disputar, em pé de igualdade, os mais altos postos do sistema capitalista seja nos Estados nacionais, nas empresas, nas organizações mundiais etc. O direito do gênero feminino não ser discriminado. A exemplo do caso da Thereza na revista feminina, que passa a ocupar o lugar do chefe, que era homem, e a substituir todos os homens da redação por mulheres, e essa permissão vai permitir às mulheres um acesso ao mundo dos negócios, à burocracia capitalista, ao poder, e principalmente ao consumo. Nem todas as mulheres terão condições iguais aos homens ou às mulheres da classe dominante, mesmo que esses direitos nos sejam dados, porque os recortes de raça e classe, por se estruturarem muito mais na exploração do que na opressão, não permitem mobilidade. Para que haja mulher em altas esferas de poder é preciso uma quantidade muito maior de mulheres pobres sendo exploradas. O emporamento de umas ocorre às custas da desumanização de muitas.
Ponto #7 e Ponto #8
As pautas das mulheres estão relacionadas principalmente às pautas das mulheres da classe dominante, portanto não há uma perspectiva de classe. Quando a série mostra a Adélia como uma personagem da classe dominada, inclusive as pautas que essa mulher defende, ela está vinculada às mulheres brancas, tanto que elas se aproximam, estabelecem uma relação. Essas pautas estão vinculadas aos direitos democráticos, que são importantes, mas que tem um limite. O acesso aos direitos democráticos não vai mudar a estrutura social, então, até certo ponto é permitido às mulheres alcançar certos direitos, a partir do momento que esse alcance abala a estrutura do capitalismo, ele passa a ser negado.
O que eu estou chamado aqui de perspectiva de classe? (Principalmente da classe trabalhadora) A visão de mundo representada pelas personagens, pelos objetivos, pelas situações vividas, são todos relacionados a classe dominante, mas são apresentados como individuais. Adélia não luta pelo direito das mulheres de sua classe, mas por seu direito individual. O individualismo burguês é exatamente o motor do feminismo liberal.
Ponto #9
A série, na verdade, dificulta, impede o receptor de compreender a realidade, ela mistifica a realidade, ao apontar as pautas feministas da classe dominante, do feminismo liberal, como sendo as pautas do feminismo universal. Ela iguala essas pautas, ela iguala esses feminismos, como se o feminismo liberal fosse "o" feminismo. Isso não é verdade, o feminismo liberal é uma vertente, uma perspectiva do feminismo, que está ligado à classe dominante, e, portanto, não tem nenhum vínculo com a superação da sociedade.
Finalizando
É muito importante que as mulheres (militantes ou não) que se colocam no campo da esquerda, ao se depararem com filmes, com séries, com obras de arte, em qualquer das manifestações artísticas, não se apaixonem de primeira porque ela trata de pautas feministas, mas façam uma análise de qual feminismo está sendo defendido por estas manifestações, porque a mídia, o entretenimento em massa, também forma a classe trabalhadora, e, neste caso, deforma a classe trabalhadora.
Coisa mais linda é mulher que compreende seu papel revolucionário na sociedade.
Karla Raphaella Costa Pereira
Doutoranda em Educação (PPGE/UECE)